domingo, 2 de dezembro de 2007

O julgamento de Manoel

— Eu sou trabalhador, não sou ladrão não...
— Cala a boca, “viado”! Você vai morrer agora, filho da “puta”!
Manoel estava voltando do trabalho como costumava todos os dias. O ponto de ônibus era um pouco distante da sua casa, obrigando-o a uma andada considerável ao encontro do seu lar. Porém, neste dia, uma viatura da polícia veio se aproximando do rapaz. Um dos policiais fez sinal para ele parar. Ele obedeceu a ordem da autoridade policial. Cinco policiais saíram do carro e vieram em direção a Manoel:
— Ei, rapaz! Encosta aí no muro – disse um policial.
—Mas por quê? Eu...
— Encosta, “porra”! – gritou o policial, empurrando ele para o muro.
Os outros guardas começaram a revistá-lo. Todas as suas coisas foram jogadas no chão. Um policial pegou sua carteira, abriu-a e tirou sessenta reais dentro dela.
— Por favor, senhor. Esse dinheiro é tudo que eu tenho nessa semana...
— Cala a boca rapaz! Eu tenho uma proposta pra te fazer. Você tem sessenta reais, uma nota de dez e uma de cinqüenta....
— Eu ganho isso por semana... – Manoel interrompe o guarda.
— Cala a boca “mermão”! Não “ta” vendo que eu “tou” falando não?! – o policial dá um tapa na cara de Manoel que pôs-se a chorar – a minha proposta é: somos aqui seis cidadãos que estão precisando de dinheiro. Temos sessenta reais. Então não custa nada a gente dividir o dinheiro. Dez pra cada um. A gente pega cinqüenta e você fica com dez, toma aí.
— Mas assim a minha família vai passar fome, senhor.
— “Ó paí ó”! A gente quer ajudar “véi”, mas esses “pretos” não querem não – diz o policial.
— É, não adianta ser bonzinho não – diz outro.
— Não é ruindade não, caras. É que eu “tô” na dificuldade, bicho, por favor senhor – fala Manoel aflito.
— Isso é jeito de falar com a gente “rapá”?! “Cê” “tá” maluco é, seu “preto”?! – enfureceu-se o policial que está coordenando a operação.
— Desculpa, senhor.
— Desculpa, uma “porra”, seu “viado”! Você é muito do ingrato, isso sim!
— É porque você não sabe o que eu “tô” passando, senhor.
— Como você ousa me afrontar sua desgraça?! Sabe o que você merece? Merece é uma bela de uma “coça”.
Os cinco policiais começaram a espancar Manoel.
Ele, um trabalhador que não tem emprego fixo. Tem a profissão de pedreiro. Passa a vida fazendo “bicos”. Há um mês conseguiu um emprego temporário. Está trabalhando numa construção de um prédio, que durará alguns meses. Ele trabalha das oito da manhã às oito da noite com duas horas de almoço. Chega a casa depois das dez, pois sua casa é muito longe da construção. Tem que acordar-se às cinco da manhã para se aprontar e chegar pontualmente. Ele só completou o primeiro grau no colégio, pois teve que trabalhar desde cedo. Depois casou e teve quatro filhos com sua mulher, que não trabalha fora de casa para poder cuidar dos meninos. Manoel fez vários amigos no trabalho. Nesse dia, percebeu que seu amigo Pedro estava chorando e muito nervoso.
— O que foi, Pedro? Por que você está chorando?
— É minha filha, Manoel.
— O que aconteceu com sua filha?
— Ela morreu quando “tava” indo pra escola, com uma bala perdida. Eu recebi o telefonema da minha mulher neste instante – Pedro volta a chorar desesperadamente.
— “Ô” meu amigo – Manoel o abraça – eu sinto muito. Mas tenha a certeza que ela agora “tá” num ótimo lugar, na companhia de Deus... vá pra casa, descanse alguns dias.
— O enterro dela é hoje. Eu falei com o nosso supervisor e ele disse que é pra eu voltar amanhã.
— Como assim “véi”? Você perde a sua filha hoje e ele não te dá nenhum dia de descanso?
— O que eu posso fazer? “Tô” precisando do emprego.
— Eu vou falar com ele, não é assim não.
Manoel foi em direção ao supervisor e falou:
— Com licença, senhor. É porque o meu amigo Pedro perdeu a filha hoje.
— Sim e daí?
— Ele já vai ter que trabalhar amanhã? O senhor poderia dar uns dias de descanso a ele.
— O enterro é hoje. Amanhã ele pode voltar.
— Mas ele não vai ter condições de trabalhar.
— Olha meu rapaz, não se meta nisso! Se ele não trabalhar bem, eu o demito.
— Você não tem filho não, não tem pai, nem mãe, nem irmão ou algum parente que você goste muito não?
— Cale a boca se não quiser ser demitido agora mesmo. Quem manda nisso aqui sou eu! – gritou o supervisor.
Manoel sai revoltado. Despede-se do amigo que vai ao enterro da filha. Ele trabalha o resto do dia bastante indignado. Percebe como é dura a vida de um trabalhador pobre, que não teve oportunidades para completar seus estudos mesmo nas decadentes escolas públicas. Assim, deve se submeter aos abusos dos patrões e de toda e qualquer hierarquia sustentada por supostas autoridades para não sofrer as penalidades do sistema que extermina ou exclui aquilo que não convém à sua continuidade. A autoridade policial é uma delas; e na volta do trabalho ele foi abordado e obrigado a respeitar os abusos dos policiais.
— É porque você não sabe o que eu “tô” passando, senhor.
— Como você ousa me afrontar sua desgraça?! Sabe o que você merece? Merece é uma bela de uma “coça”.
— Ai! Ahrr! Ai! Ai! – grita Manoel.
— Ha! Ha! Ha! Ha! – os policiais dão gargalhadas.
— Se fosse um branco num carro importado vocês não fariam isso. Eu sou trabalhador, não sou ladrão não...
— Cala a boca, “viado”! Você vai morrer agora, “filho da puta”!
Os policiais sacam as armas e cada um dispara dois tiros. A nota de dez, que eles deixaram, desaparece no meio do líquido vermelho oriundo dos dez furos do corpo de Manoel.

(David Alves Gomes – 2007)

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